Diversos são os modos como artistas negros lançam mão (ou não) de uma herança afro-brasileira em experiências individuais e coletivas para se (a)firmarem como pessoas e artistas. Essa questão se tornou mais decisiva num momento em que uma parcela da sociedade brasileira escancara seu repúdio ao empoderamento negro resultante de ações populares e governamentais, tais como a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira em sala de aula, a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) em 2003, a instituição do Estatuto da Igualdade Racial, em 2010, e a decisão pela constitucionalidade das cotas raciais pelo Superior Tribunal Federal, em 2012. Mais recentemente, em São Paulo, a atenção se voltou para a presença negra nas artes, devido à controvérsia em torno do uso de blackface numa peça que seria encenada num importante centro cultural da capital. A peça foi cancelada e o repúdio à prática do blackface gerou um debate sobre a representação do negro nas artes no país, escavando antigos mal-entendidos sobre mestiçagem e racismo no Brasil. Tendo este contexto explosivo como pano de fundo, explorou-se, nesta pesquisa, a experiência de artistas negros da atualidade. Os relatos autobiográficos de sua inserção no mundo das artes revelam, entre outras coisas, as estratégias desses artistas para escapar do racismo e, no limite, passar-se por branco mesmo quando se afirmam como negros. Como mulher e pesquisadora negra, percebi-me enredada em ambiguidades semelhantes às dos artistas e curadores com quem convivi. Consequentemente, o pacto etnográfico entre mim e meus interlocutores de pesquisa baseou-se no enfrentamento de uma longa história de racismo e da necessidade de tornar-se o que se é negro. Tendo como aporte teórico uma antropologia da experiência e da performance, a pesquisa mostrou que a arte é fundamental no processo de tornar-se negro, tanto para o artista quanto para a sociedade, por pelo menos duas razões: 1) por mostrar o óbvio que mãos negras não servem apenas para a lidar com fluídos corporais com que mãos brancas não querem lidar; 2) por mostrar o que a sociedade em geral deseja manter oculto, isto é, a contribuição de cada cidadão brasileiro na criação de um país violento e desigual a maioria de nós ainda se conforma em se ver como bom mestiço, senão branco, e, assim, denunciar o racismo ao mesmo tempo em que se mantém racista. É contra isso, no entanto, que artistas negros objetificam o próprio corpo em performances: o cabelo vira Bombril, o corpo sangra, é coberto por mãos/ imagens brancas ou é abatido pela violência, como no caso de Priscila Rezende, Michelle Mattiuzzi, Olyvia Bynum, Dalton Paula, Peter de Brito, Flávio Cerqueira e Sidney Amaral. É contra isso que tecem e esculpem tetas que denunciam antes e hoje ainda alimentam o mundo inteiro sem alimentam os próprios filhos, como Lidia Lisbôa. É contra isso também que fazem ebós, sacudimentos e assentamentos, como Moisés Patrício, Ayrson Heráclito e Rosana Paulino. E, também, obras em que a beleza e a delicadeza remetem a conhecimentos ancestrais, que, ainda por preconceito racial, são menosprezadas como arte indigente, mas, por outro lado, também passaram a ser reconhecidas como Arte com maiúscula, sem que a cor das mãos de quem as produziu seja embranquecida, como no caso de Sônia Gomes. Ao narrar seus dilemas e conquistas, esses artistas mostram as ambiguidades de pensar alteridade e universalidade considerando raça como um lugar de experiência, que marca a sua presença e obra no mundo.