Passa-se uma Casa é muito mais do que uma análise dos aspectos existenciais do problema da moradia no Rio de Janeiro. Com efeito, este livro de Lícia Valladares transcende o problema da habitação das massas populares cariocas para retratar alguns aspectos cruciais da vida do favelado e as condições da sua luta pela sobrevivência. E embora o título, como verá o leitor, seja perfeitamente adequado, este livro poderia igualmente ter sido batizado de “A Política do Favelado”, posto que, entre outros aspectos, é disso também que ele trata.
Passa-se uma Casa é principalmente um livro que se lê com prazer. Sua autora estudou e viveu a favela e os favelados com um grau de empatia raramente atingido por outros autores. Mas Lícia Valladares jamais se deixa iludir pelo pitoresco do barraco ou pelo charme da lavadeira: seus favelados se assemelham mais aos “Bandidos” de Hobsbawm do que a outra das tantas versões caboclas do “bon sauvage”. Sua perspectiva é distanciadamente épica e nunca demagogicamente dramática.
Embora este livro procure e consiga analisar as vicissitudes das populações faveladas “removidas” ou ameaçadas pela “erradicação” sob uma perspectiva concreta e totalizadora, a autora não teve a pretensão de esgotar o assunto. Como em todo trabalho intelectual inteligente e rigoroso, a sua perspectiva é seletiva. Concentra-se na análise das formas de manipulação a que é submetido o favelado antes e durante o processo de remoção, assim como nas defesas dessas populações e na sua capacidade de criar formas próprias e originais de contramanipulação.
O que acontece numa favela quando se anuncia oficialmente a sua erradicação? Qual a resposta dos seus habitantes perante as ameaças de remoção? Qual a sua resposta política sob diferentes condições? Como se dá a mudança para as habitações da COHAB, financiadas pelo BNH? Que tipo de espaço urbano acaba sendo criado nos novos conjuntos habitacionais? E finalmente, o que acontece ao favelado após a sua remoção para uma casa da COHAB? Por que tantos entre eles “passam a sua casa”? E por que tantos voltam ao barraco e à favela? Quais são os fatores econômicos e sociais que movimentam esse surpreendente círculo vicioso?
Estes e outros problemas correlatos são estudados por Lícia Valladares que conseguiu reunir neste texto as qualidades do bom trabalho acadêmico à perspicácia e à sensibilidade tão frequentemente ausentes em outros trabalhos do gênero. Explícita ou implicitamente, a autora rejeita velhos estereótipos, mistificações ou conclusões excessivamente simplistas sobre a favela e os seus habitantes, e seu comportamento no mundo e face ao mundo, para negá-los ou redefini-los à luz das suas observações diretas e rigorosas. O jogo ambíguo dos cabos eleitorais, dos assistentes sociais com diferentes formas e graus de ambiguidade, e a maior ou menor simpatia dos pequenos funcionários administrativos, sempre avidamente desinteressados - nada escapa à observação da autora.
Autoconstrução? Mutirão? Lotes urbanizados? Temas e soluções tão em voga no Brasil dos últimos anos certamente serão revistos à luz dos fatos revelados por este livro. Embora a autora não vá e nem pretenda ir tão longe, os mecanismos dos jogos de interesses revelados pelas suas pesquisas sugerem convincentemente que a complexidade dos problemas é bem maior do que parecem supor certas fórmulas correntes para a sua solução.
Passa-se uma Casa é um trabalho sociológico consistente e bem documentado, como o leitor verificará pelas inúmeras fontes e pela extensa bibliografia utilizada pela autora. Contudo, graças à sua perspectiva totalizadora, à redação clara e simples e à ausência de jargão acadêmico desnecessário, a autora certamente produziu um documento de interesse universal.